Exposição “AZUL MARE — Arte e Ciência” | 22 de março a 7 de maio de 2024 | Biblioteca José Saramago (Campus 2)
Azul Mare
É a água que modela as formas sobreviventes das algas de hoje. Estima-se que existam cerca de 52 000 espécies de algas [1], cada uma delas com a sua forma e propriedades. Quer estejamos em terra ou no mar, qualquer alga requer a presença do elemento água, mesmo que seja por um período relativamente curto, como costuma acontecer com algumas espécies na terra. Mas é no mar com a sua água salgada com diferentes salinidades, temperaturas, correntes, profundidades e ecossistemas que ocorre a maior variedade de algas com diferentes escalas, formas e propriedades. Desde escalas microscópicas às macroscópicas, as algas são conhecidas pelas suas variadas propriedades. Dependendo da espécie, ao longo da exposição podemos verificar nos textos da investigadora Teresa Mouga, as seguintes propriedades: antioxidantes, antimicrobianas, anti-helmínticas, antibacterianas, anti tumorais, anti-inflamatórias, algicidas, antifúngicas anticoagulantes, anti- protozoárias, antivirais, tonificantes, alimentares, ricas em vitaminas e sais minerais, e propriedades gelificantes, espessantes e estabilizantes. Algumas destas características são conhecidas desde longa data por populações costeiras que sempre usaram as algas na alimentação humana e animal, assim também como fertilizante. Estimam-se que as algas e outros organismos de pequena escala libertem cerca de 150 biliões de Kg de nitrogénio todos os anos, nutriente importantíssimo para a boa saúde dos ecossistemas de base.
Durante o percurso da circulação termoalina [2], uma gota de água do mar identificada em Peniche pode levar 1500 anos a deslocar-se até meio oceano pacífico. Neste momento, a circulação global oceânica de superfície e de profundidade, que depende em grande parte das grandes massas de gelo dos polos, encontra-se em mudança. Os oceanos têm-nos prestado anos e anos de enorme previsibilidade climática e a resposta está em grande medida na vida dos oceanos “triliões e triliões de organismos marinhos minúsculos, dos quais a maioria de nós nunca ouviu falar – foraminíferos, cocolitóforos e outras algas calcárias – capturam o carbono proveniente da atmosfera, em forma de dióxido de carbono, quando penetra no oceano, utilizando-o (em combinação com outras coisas), para produzir o seu revestimento. Ao encerrar o carbono nas suas conchas ou placas, evitam que volte a evaporar para a atmosfera, onde aumentaria perigosamente o volume de gases com efeito de estufa.” [3] A costa de Dover, em Inglaterra, conhecida por White Cliffs, ou a Serra de Aire e Candeeiros são constituídas por camadas e camadas intermináveis destes organismos marinhos mortos. Bill Bryson lembra-nos que um cubo de quinze por quinze centímetros de pedra calcária pode conter mais de mil litros de dióxido de carbono comprimido, que na nossa atmosfera estaria a agravar ainda mais as já avançadas alterações climáticas. O mesmo autor lembra também que existem cerca de 80 mil vezes mais carbono encerrado em rochas da Terra do que na atmosfera. Não admira por isso, que uma das indústrias que mais dióxido de carbono emite para a atmosfera seja a cimenteira, que domina dentro da indústria com 3/5 das emissões. Para se ter uma noção das quantidades, equivale a mais de metade de todas as emissões criadas pelos automóveis a combustão no mundo inteiro.
Quando se recolheram as algas para completar o herbário em cianotipia presente nesta exposição, Teresa Mouga, Investigadora do MareIPleiria chamou a atenção para uma camada enorme de algas calcárias da família das Lithophyllaceae, sobretudo a espécie Lithophyllum incrustans que rodeava uma comunidade de ouriços do mar. Até aí alguém com olhar menos informado pensava que os ouriços tinham escavado buracos na rocha. Depois da explicação da Teresa percebeu-se que estava perante o fenómeno contrário, as algas é que tinham crescido em redor do local que os ouriços ocupam e que a ele retornam sempre. Portanto, não houve uma subtração, mas um acrescentamento de carbonato de cálcio ao longo da costa litoral promovido por essas algas calcárias.
Para um cientista “as algas são organismos simples, que vivem na água ou em zonas húmidas e que são capazes de fazer a fotossíntese na presença de luz, produzindo compostos orgânicos e oxigénio (…) de entre estas, as macroalgas são organismos macroscópicos, algumas com vários metros de comprimento (até 65 m)” [4]. Já para alguém que venha do campo da cultura ou das artes, as algas são, em grande medida, ilustres desconhecidas. Sabemos que as podemos usar na alimentação e até podemos admirar as suas formas e cores in situ numa praia ou em ilustrações científicas, como aquelas que mais frequentemente começaram a circular a partir do final dos séc. XVIII e XIX. Mas são raros os ensaios filosóficos, de literatura ou até representações artísticas destes organismos que nos mostrem um ensaio da sua força, importância e expressividade.
A cultura e o pensamento ocidental pouco ou nada se detiveram para compreender estes organismos, algumas no reino Plantae, mas outras no antigo reino Protista, um espaço reservado para agrupar todos os outros organismos que não são plantas, animais ou fungos. Na cultura ocidental dominam os temas relativos à espécie humana, poucos são os autores que se dedicam a pensar ou a expressar a condição animal, e menos ainda a destes organismos fotossintéticos.
A referência residual das algas no território da cultura e das artes, poderá dever-se ao facto de os humanos habitarem na terra. Mas também é preciso lembrar o mar e as zonas costeiras como lugar de estudo, prazer, deleite, desporto ou veraneio, sendo uma invenção e uma experiência muito recente na história humana. Antes e desde longa data, o mar medieval é o lugar temido e ocupado pelo desconhecido e pelos monstros. Mais tarde, o mar é lugar de comércio, mas também de pirataria, dos naufrágios e até de guerras como é o caso da Guerra de Peloponeso, que opôs Atenas a Esparta, magnificamente descrita por Tucídides na História da Guerra de Peloponeso, que na parte final relata com exatidão o desastre de guerra, em terra e no mar dos atenienses na Sicília. Em todo o caso, estamos sempre a falar de acontecimentos de superfície e não de profundidade.
Apesar desta aridez na compreensão cultural da condição das algas e dos ecossistemas marinhos, a ciência em geral e a biologia marinha em particular, fazem o seu caminho de compressão destes organismos, a que pode não ser alheio o otimismo dos estados e dos mercados em relação à possibilidade de exploração dos seus recursos. A diferença destes dois últimos atores para a comunidade científica pode residir na cautela que esta pode exercitar, porque retrospetivamente dispõe já de dados sobre os problemas acumulados, quer nos ecossistemas terrestres, quer marinhos. No entanto, hoje sabemos que a ciência não pode caminhar sozinha no território cultural mais vasto. É urgente uma perspetiva cultural e artística sobre os mares, por forma a densificar o conhecimento e sabedoria coletivos, ativos fundamentais na refundação da comunidade humana unida pelo cuidado do planeta Terra.
O caminho para este trabalho parece estar incitado numa das raras aparições de uma filosofia das plantas. Escrita por Emanule Coccia “A Vida das Plantas. Uma Metafísica da Mistura”, lembra que a vida “nunca abandonou o espaço fluído. Em tempos imemoriais, quando saiu do mar, encontrou e criou em seu torno um fluido com características – na consistência, na composição e na natureza – diferentes. (…) Não somos habitantes da terra, habitamos a atmosfera. A terra firme não é mais do que o limite extremo deste fluído cósmico no seio do qual tudo comunica, tudo se toca e tudo se estira” [5].
Pensemos então como a vida, no seio da qual tudo comunica e tudo se toca, pensemos como Bill Bryson, que na obra já citada demonstra como essa comunicação é contínua, processualmente inseparável e com uma escala temporal de compreensão que remete para cadeias de relação dilatadas no tempo geológico. Pensemos em trabalhar a componente estética para que nela se possa depositar depois a ética e a política.
A exposição é constituída por fotografias de Emanuel Brás realizadas nas instalações do MareIPleiria [6], textos de Teresa Mouga e um herbário de algas realizado em cianotipia a partir de algas recolhidas ou reunidas no herbário do nosso professor e investigador Marco Lemos. Quisemos glosar o herbário de Anna Atkins, porque foi no contexto das artes, um dos raros momentos de atenção e curiosidade para com as algas.
Anna Atkins nasceu a 17 de Março de 1799, a sua mãe morreu após o parto, sendo criada pelo seu pai John Children, que era zoólogo e químico. John Children ensinava e incitava a sua filha para as coisas da ciência. Dedicou-se à botânica e quando aos 26 anos Anna se casou com John Pelly, pode ampliar os seus conhecimentos no domínio da ciência, nomeadamente no conhecimento dos novos processos fotográficos. O seu pai e o seu marido eram bons amigos de William Henry Fox Talbot, mas também de John Herschel [7], cujo conhecimento do processo da cianotipia que este último desenvolveu pareceu a Anna Atkins perfeito para elaborar um herbário de algas. Porque apenas precisava de alguns produtos químicos e papel, e o resultado foi, nas suas palavras, surpreendente, porque permitia, melhor que qualquer desenho, descrever a morfologia de cada alga, mesmo as mais espessas como as algas calcárias, que por não poderem ser prensadas, aparecem no herbário com contorno mais difuso, mas satisfatório no entender da autora. Ao realizar o herbário em cianotipia, Anna Atkins tornou-se na primeira mulher a criar imagens fotográficas não só de algas, mas também do seu próprio texto manuscrito, indicando os propósitos do herbário organizado em livro, os nomes das várias espécies em latim e até dedicatórias.
Samuel Rama
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[1] Número estimado por Michael Guyri na publicação eletrónica AlgaeBase. World-wide electronic publication, National University of Ireland, Galway. https://www.algaebase.org
[2] A circulação termoalina, é muito genericamente a circulação global entre oceanos condicionada pelas diferenças térmicas e pela densidade salina da água.
[3] BRYSON, Bill, Breve História de Quase Tudo, Trad. Ivo Korytowski, Companhia das Letras, São Paulo, 2005. p.201
[4] Teresa Mouga no material de investigação presente na exposição Azul Mare.
[5] COCCIA, Emanuele. A Vida Das Plantas Uma Metafísica da Mistura, trad. Jorge Leandro Rosa, Sistema Solar, Lisboa, 2019. P. 59.
[6] especificamente nos laboratórios de criação de algas e microalgas.
[7] A cianotipia foi um processo fotográfico inventado em 1842 por um matemático, astrónomo, químico e inventor Sir John Herschel. Consiste numa emulsão sensível à luz
que contém sais de ferro que reagem aos raios ultravioleta, este processo permitia de uma forma relativamente simples fixar numa superfície as sombras numa cor Ciano
também conhecida como cor água (acqua).
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FICHA TÉCNICA
Curadoria:
Teresa Mouga e Samuel Rama
Coordenação científica:
Teresa Mouga
Fotografia:
Emanuel Brás (Laboratórios MARE — Politécnico de Leiria)
Marco Lemos (Herbário de algas)
Produção:
Sónia Gonçalves
Design gráfico:
Francisco Moreira
Comunicação:
Francisco Moreira, Liliana Gonçalves
Agradecimentos:
Teresa Mouga
Emanuel Brás
Maria Manuel Gil
Sérgio Leandro
Pedro Cartageno
Marco Lemos
Daniela Amorim
António Palmeira
Sónia Gonçalves
Liliana Gonçalves
Francisco Moreira
Serviços Técnicos do Politécnico de Leiria